Diário do Paciente

Desmistificando o câncer

Este relato foi escrito por Adriano Nuernberg para o Diário do Paciente da ACBG Brasil

Não sei se é uma coisa específica da minha timeline, ou seja, da minha rede social aqui no face, mas tenho visto muitas postagens daquele tipo copia/cola sobre as pessoas com diagnóstico de câncer. Algumas chegam a induzir o leitor a pensar que seu amigo acaba de receber esse diagnóstico e a maior parte traz um discurso do câncer como uma “tragédia pessoal”, motivo de “tristeza” e “sofrimento”. Outra característica geral destas postagens é associar o tratamento a uma “batalha”, sendo a pessoa diagnosticada, necessariamente, um “guerreiro”. A intenção comumente sugerida por essas postagens é “homenagear” esses “guerreiros” e o câncer é qualificado como uma “praga”. Essa associação é forte no senso comum, lembrando que ouvimos frequentemente expressões como “a corrupção é o câncer de nossa sociedade”. Aliás, vários comentários de meus amigos às postagens que fiz aqui relatando a vivencia da cirurgia e do tratamento oncológico, traziam essas palavras como “guerreiro”, “luta”, às quais agradeci pelo carinho e apoio que tentavam manifestar por meio destas palavras. Também gostaria de dizer que respeito muito os que encaram dessa forma, especialmente os parentes das pessoas que perderam alguém que amavam em razão do câncer ou em decorrência de complicações geradas pelo tratamento. Sinto que há essa necessidade de reconhecer o empenho e a coragem de muitos que morreram juntando todas as forças possíveis para continuar vivendo. E, ressalto, é preciso respeitar esse sentimento e entender essas manifestações como legítimas formas de elaborar os lutos e perdas pessoais e familiares, que em geral resultam desse processo.

Contudo, de uns tempos para cá tenho refletido sobre tudo isso e gostaria de compartilhar com vocês essa perspectiva muito pessoal, especialmente depois desse ano de 2016, no qual mergulhei de cabeça nessa experiência, convivi diariamente com pessoas em tratamento oncológico e com profissionais da área que compartilhavam suas vivências.

Em primeiro lugar, ao contrário do que essas postagens sugerem, no meu convívio com pessoas que estão em tratamento oncológico não vejo mais tristeza do que nas pessoas em geral. As conversas que travei ou ouvi nas salas de espera, mesmo girando em torno dos aspectos mais duros do tratamento, não eram marcadas por manifestações de tristeza. Sempre me pareceram conversas comuns de pessoas que, se não estavam comentando assuntos aleatórios, compartilhavam diferentes vivências e transitavam entre questões objetivas (medicamentos, profissionais, tratamentos) e questões mais subjetivas (ideias religiosas, existenciais, busca de um sentido). Claro que ninguém quer receber esse diagnóstico ou que está contente em viver com câncer, mas isso não quer dizer que sua vida se restringe ao sofrimento e à dor. Tenho até a impressão que a tristeza era mais comum entre os acompanhantes do que na pessoa que tinha o diagnóstico.

Outro ponto que destaco é que essas postagens que descrevi insistem nessa ideia do tratamento como uma “luta” e a pessoa como “guerreiro”. Como leciono e pesquiso sobre deficiência a partir de um modelo teórico que concebe a lesão ou impedimento físico como algo inerente à vida humana, ficava antenado com essas expressões e sua semelhança com a crítica que eu pauto em minhas aulas sobre o discurso da “superação” que coloca a pessoa com deficiência como “especial”, desumanizando-a. Arrisco-me a dizer que qualquer um que reflita sobre os dados da prevalência do câncer na população ou que passe um dia em instituições como o CEPON aqui em Florianópolis, ficaria receoso com esse tipo de expressão e com seu efeito. Saber que o câncer não é uma doença rara, possui diversos tipos, atinge todas as idades e está entre as doenças mais comuns na população, deveria fazer as pessoas saírem dessa perspectiva tão negativa e avançarem para algo que eu chamaria de mais “realista”. Qualquer um que pesquise sobre a transição epidemiológica vivida do século passado para cá sabe que hoje os principais padrões de morbidade, lesão e morte estão vinculados a doenças crônicas como o câncer. Assim, essa não é uma doença que alguns poucos “azarados” na loteria da vida possuem. É uma doença que todos deveríamos estar preparados para falar, viver ou apoiar a quem recebe esse diagnóstico. Infelizmente, para muitos, a própria palavra “câncer”, que tem uma origem tão inocente (a imagem do caranguejo), tem um peso de toneladas insuportáveis, quase um tabu. Por isso, essas postagens nem sempre vão produzir menos sofrimento ou capacidade de enfrentamento entre os familiares ou pessoas que vivem a doença. Pelo contrário, podem ter efeito reverso pois enfatizam essa noção de uma vivencia trágica, muitas vezes associada à morte e à degeneração.

Acredito que a tragédia que vivemos é não termos respeitado nosso direito pela saúde e sermos usurpados no acesso pleno a um tratamento digno e eficaz. Trágico é o CEPON, por exemplo, ter que suspender o cadastro de novos pacientes para pressionar o governo a liberar recursos que já estavam previstos no orçamento da Saúde Pública. Trágico é não termos uma política pública de prevenção e tratamento que consiga dar a todos o que de melhor a ciência e a tecnologia ofertam para o tratamento oncológico. No meu cotidiano, vejo todo dia pessoas cujo problema maior não é estar com câncer, mas ter que se submeter a horas de desconforto dentro de uma van ou ambulância para minimamente ter o acesso a uma consulta com oncologista ou qualquer outro especialista. São essas pessoas que me fazem sentir muito mais alguém privilegiado por ter recursos e uma rede de apoio maravilhosa do que um guerreiro dentro de uma batalha.

Por isso, sugiro que ao invés de copiar e colar mensagens achando que estamos ajudando pessoas em sofrimento, olhemos para nosso entorno, nossos modos de vida, nossa qualidade de vida, alimentação, cuidado com o outro e consigo. É muito mais útil para mim refletir sobre as evidências que a ciência tem trazido para entender a alta prevalência do câncer e difundir essa informação em favor da melhoria das condições de vida do que, superficialmente, individualizar e reduzir essa doença a uma tragédia pessoal. Aos que não podem ou não tem acesso a essas informações, sugiro, como já o fiz aqui em postagens anteriores, buscarem a melhor forma de apoiar uma pessoa nessa condição, evitando vieses e equívocos que só pioram o estado emocional de seu amigo ou familiar.

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